quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

O NOVELO DO SAMELO




O gato Samelo
Brinca com o novelo
Corre atrás dele num atropelo
Mas vem o ministro
Com um ar sinistro
Sobe o imposto
Para nosso desgosto
E aumenta o novelo
O gato Samelo
Não desiste, insiste
Persegue o novelo
Chega a Justiça
Toda roliça
Bem arreada
Na falsa fachada
E aumenta o novelo
Vida difícil para o Samelo
Eis o jet set
Gente fina e queque
Cheia de azia
Da mamoplastia
E põe o novelo
Do tamanho do Samelo
Que não conhece fermento
Para tanto aumento
Mas eriça o pêlo
E resiste ao flagelo
Cai o empresário
Que era milionário
Agora é insolvente
Com um carro potente
E aumenta o novelo
Fá-lo maior do que o Samelo
E este que é gato, não é camelo
Foge lesto do pesadelo
Chega o asqueroso
Todo vaidoso
Rouba à vontade
Sem piedade
Cresce tanto o novelo
Que vira tortumelo
Corre louco o Samelo
Para salvar a vidinha
Mas na correria parte o vaso à vizinha
Fugiu do novelo
Mas levou com o chinelo
Antes assim, foi por um pêlo.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

TWINS

Gémeos. Tão parecidos e tão diferentes. Ao longe quase não se distinguiam. Ao perto percebia-se o que os separava. O mais velho, vinte minutos mais velho, era extrovertido, brincalhão, gostava do Sol e das estrelas. Principalmente das de cinema. O mais novo, vinte minutos mais novo, era tímido, gostava de ler e sobretudo de aprender. Gostava da escola. O mais velho não lhe compreendia os gostos mas achava graça. Chamava-lhe doutor. Um dia a mãe irritada perguntou pelos trabalhos de casa. Feitos os do mais novo. Por fazer os do mais velho. Preferia o Macgyver, o Star Trek e, claro, os castigos da mãe. Assim foram pela vida: O mais novo estudando de dia; o mais velho estudando a noite. Por vezes cruzavam-se ao romper da aurora. Um chegava de mais uma noitada. O outro saía para mais um exame. No abraço que davam percebia-se que as diferenças não os separavam. Eram o mesmo sangue. O mais novo foi para a Faculdade, fez um mestrado, tirou um MBA, sempre com distinção. O mais velho continuou na noite. Hoje é um empresário de sucesso com várias casas de copos na baixa da cidade. O mais novo é caixa num Banco há quase 3 anos. Tem boas hipótese de passar a efectivo. Vamos lá ver.

domingo, 23 de janeiro de 2011

PEÕES

Crispou as mãos na varanda e fixou os prédios em frente. O dia nascera morto de Sol enterrando ainda mais aquela paisagem de subúrbios. Olhou para dentro. Viu a vida a estilhaçar e não tinha cola para unir os pedaços. Fora despedido pelo senhor golfe como lhe chamavam. Sem razão, a crise. Sentiu saudades das tardes quentes de Primavera, das gaivotas a riscarem o azul do céu. Sentiu saudades dela a seu lado. Se ao menos estivesse ali.
Acordou bem disposto. Olhou o espelho que lhe devolveu a habitual imagem de sucesso. Desceu impecávelmente vestido e entrou no carro. Pediu pressa. O motorista arrancou e o seu pensamento fugiu para os negócios. A crise, a bolsa, os favores mais caros, os custos com o pessoal. O trânsito intenso e os semáforos foram renovando pedidos de pressa a que o motorista correspondia com maior aceleração. Nada o aborrecia mais do que chegar atrasado ao golfe.
A noite tinha trazido todas as respostas de que precisava. Levantou-se decidida a recomeçar. Alindou-se e saiu. Caminhou em direcção a casa dele com a imagem que tantas vezes ele lhe segredou; era a cola da sua vida. Seria a cola da vida de ambos. De repente um potente carro desgovernado galgou o passeio e apagou-lhe a imagem. Do carro saíu o condutor atónito e um homem visívelmente aborrecido.
Pouco depois, a pouca distância dali, um corpo lançava-se de uma qualquer varanda de um qualquer prédio dos subúrbios.
O Sol renasceu no dia seguinte.

sábado, 22 de janeiro de 2011

HI-FI

Não enganava. Os olhos minúsculos por detrás do óculos fundo de garrafa, a boca em forma de bico, as bochechas e o duplo queixo compunham uma expressão de subserviência estudada. A configuração craniana, a fazer lembrar um melão e a voz nasalada davam o toque final. Era fiel. Cheirava a fiel. Deixava rasto de fiel. Quando se dirigia ao chefe até os colarinhos se lhe enrolavam. Quando não se dirigia rondava-o pronto a satisfazer-lhe qualquer solicitude. Na ausência do chefe entregava-se aos prazeres da mão no queixo e da navegação internauta. À sua chegada controlava o mecanismo da sudação para fazer aparecer gotículas no rosto. Ajudavam a maquilhar um ar esforçado de trabalho. Quando o chefe estava de costas descansava as vistas na contemplação do infinito. Quando o chefe se voltava já martelava vigorosamente o teclado com as mangas da camisa arregaçadas em desalinho. 
Na rua caminhava tão perto do chefe que se confundia com a sua sombra. À voz do chefe salivava. Não tinha cauda. Se a tivesse abaná-la-ia excitado. Um dia o chefe lançou um osso e gritou-lhe: - Vai! Ele foi. Correu desalmadamente. O osso era de plástico mas não interessava. Tinha ido. Quando voltou o chefe trocara-o por outro fiel. " Já fostes!".

PORTUGAL EM POSTAL

O Polícia não policia
O Juíz não julga, adia
O médico não aparece
Ai de alguém se adoece
O professor deixa andar
Há cursos para comprar
A funcionária mete baixa
Dependura-se na caixa
O jovem não sai da cama
Habituado cedo à mama
Mas mantém-se bem nutrido
Com o rendimento garantido
Enquanto os velhos doentes
São deixados pelos parentes
Anda vaidoso o patrão
Porque tem sempre razão
Na directa proporção
Do poder e do bastão
Nada vende o vendedor
Não produz o lavrador
Não tem barco o pescador
No meio de tanta asneira
Engorda a gasolineira
E também o chico esperto
À custa do amigo certo
É neste triste cenário
Que o governo mercenário
Diz que a crise pula e avança
e lhe ataca a finança
Mas por loucos desatinos
Comprou dois submarinos
E fez mais uma auto-estrada
Para aumentar a trapalhada
Agora não tem dinheiro
Nem para o amigo empreiteiro
Lança o peão rapa e tira
Sempre com o povo na mira

Eu não sou inteligente
Nem tenho o dom do Aleixo
Mas na cabeça da gente
Está o mal de que me queixo

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

APONTAR É FEIO

O nervoso secava-lhe a garganta e colava-lhe a língua ao céu da boca. Era por ali que tinham de sair as palavras, estruturadas, fluentes e isso ainda mais o angustiava. O aperto no estômago encolhia-o na direcção dos sapatos. Tinha de iniciar a palestra e não sabia por onde. Era imensa a escuridão. Apelou a todos os Santos que conhecia para o iluminarem. Não se sabe se por intervenção dos invocados ou se por mero acaso lembrou-se; meteu sôfregamente a mão no bolso, procurou e lá estava. Trouxe-o para a luz do dia. Uma estúpida dúvida sobre se tinha pilhas foi logo desfeita pela pressão do botão ON. Magnífico! O ponteiro luminoso que recebera como prenda de anos acendera. Com ele passou a ter uma luz ao fundo do túnel. Com ele podia falar do que não sabia que o ponteiro encarregava-se do resto. Com ele podia até apresentar o boletim metereológico. Vou ver se chove.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Levantou-se depois da hora
Com o sono urinou por fora
Ensaboou-se, faltou a água 
Limpou-se à própria mágoa
Calçou um sapato de cada cor
Não apertou um atacador
Guardou a carteira no casaco
Mas o bolso tinha um buraco 
O carro pegou de empurrão.
Mais uma consumição.
Foi logo abaixo a seguir.
O que estaria ainda para vir!
Foi a pé, tropeçou no atacador
Caiu no chão, sentiu dor
Pediu ajuda a Cristo
que mal fizera para merecer isto!
Do céu veio um sinal feio
Uma gaivota acertou-lhe em cheio
Chegou outra vez atrasado
Com o azar de braço dado
Aturou o chefe Mota
Que não tirava os olhos da caca da gaivota
De tanto calvário enfrentar
Não se conseguiu concentrar
Trocou nomes, números, moradas,
E fez outras trapalhadas 
No fim do dia aziago
Sentiu-se muito agoniado
Mas ainda aguentaria
Ir à tabacaria
Preencher o euromilhões
Alimentar ilusões
Procurar enfim a sorte

Que fugia do seu Norte
Mas a chave não era aquela
E veio outra vez a gaivota e acertou-lhe na lapela

AS MELHORAS

Estava doente. Sabia que era grave mas o contrato a prazo não lhe deu tréguas. Aguentou. Os transportes, os berros do patrão, a má língua dos colegas. E a maquilhagem para esconder. Depois, não aguentou e fingiu gripe. Os outros mais a zurziram. Veio o internamento e dois ou três telefonemas desculpando a ausência  mas desejando as rápidas melhoras. Pediu a um colega que lhe desse de comer ao gato mas infelizmente os filhos dele não lhe deixavam tempo livre. Quase todos estiveram presentes no funeral. Sempre tinham justificação para não trabalhar naquela tarde. Linda de Sol.

COIMBRA TEM MAIS ENCANTO

Uma das pernas já pendia sobre a caleira. A outra escorregava lentamente pelas telhas e nada adiantava o esforço para o impedir. Dependia apenas  da antena que as mãos agarravam desesperadas. Estava por um fio. Não resistia a subir a um bom telhado. Gostava de sentir a liberdade e o poder das alturas. Lá em baixo tinha de aturar neuróticos, psicóticos, ditadores e outros estupores que lhe envenenavam a existência. Cá em cima mandava-os para onde muito bem lhe apetecia. O passo mal calculado, porém, tinha-o posto nas mãos da gravidade. E era grave. Um casal de pombos, indiferente ao seu drama, pousou na antena e começou a assegurar a sobrevivência da espécie. Nem teve tempo para pensar nos contrastes da vida. A antena cedeu. Seguiu-se um grito lancinante e o vazio. Acabou com os joelhos esfolados e um arranhão num cotovelo. Felizmente estava no Portugal dos Pequeninos.

É A VIDA

Não sabia o papel que este mundo lhe tinha destinado. Já não o preocupava. Abeirou-se da grade e conferiu o rio lá  em abaixo. A chuva caía intensa criando um brilho oleoso no asfalto. Brilho era o que a sua vida nunca tivera. Um sopro de vento picou-lhe o rosto. Parou o relógio que a mãe lhe oferecera. Lembrou-se das suas palavras: - Estarei sempre contigo. Fugiram-lhe os amigos, a mulher, fugiu-lhe o trabalho e a sorte mas a mãe não. Continuou com ele. Depois partiu. Não restou ninguém. Precisava dela. Pendurou-se e sentiu que já não estava ali. Fechou lentamente os olhos e avançou um passo. Seguiu-se um estrondo. A violência do choque tinha transformado os dois carros numa amálgama. Desceu da grade e correu na direcção do acidente. Viu morrer quem queria viver. Ele que queria morrer vivia. Olhou para o relógio. Deu-lhe corda. A mãe continuaria com ele. No pulso.

COINCIDÊNCIAS

O espelho devolvia-lhe um atropelo de palavras. Ensaiara vezes sem fim mas a fraqueza dos nervos era mais forte. No dia seguinte tentaria pela última vez. A beleza estonteante e a indiferença do olhar estarreciam-no. Ergueu-se e sentiu o peso da timidez vergar-lhe as pernas. Dirigiu-se titubeante na sua direcção. Em desespero relembrou as palavras: - Desculpe ... vejo-a tantas vezes neste café... que... talvez... convidá-la. Seguiu mudo sem parar na direcção da porta levado pelas pernas vergadas. Não mais voltaria ali. Ela viu-o sair e pensou: - Amanhã quando passar por mim pergunto-lhe se aceita um café.

FELIZES PARA SEMPRE

Como era habitual acordaram com o despertador. Levantaram-se, fizeram a higiene e comeram os flocos. Ela vestiu a farda, ajeitou-a ao espelho e colocou o revólver à cintura. Ele enfiou o blusão, atirou com a mochila para as costas e pendurou as luvas no bolso traseiro das calças. Como era habitual ela deu-lhe boleia. Viviam juntos há quase 5 anos mas não sentiam a erosão da rotina. Desejavam um filho mas os tempos iam dificeis. Precisavam de melhorar as finanças. Ela deixou-o com um beijo na esquina habitual. Ele ficou a ver o carro dela desaparecer ao fundo da rua. Depois foi o habitual; da primeira vez ele fugiu por uma janela das traseiras quando ela entrava pela porta da cozinha. Não levou nada. Da segunda já ela o esperava quando ele apareceu. Fora uma antecipação de mestre que o obrigou de novo a fugir. A terceira foi de sorte para ele. Ela surgiu-lhe pela frente, bloqueou-lhe a fuga mas no último momento escorregou. Ainda lhe acertou uma bastonada que lhe rasgou o blusão. No final do dia ela apanhou-o na esquina habitual. Ele entrou cansado e beijou-a. Como era habitual ela perguntou-lhe como lhe correra o dia. Ele respondeu com os tempos difíceis. Teriam que continuar a adiar a vinda tão desejada do filho. Jantaram calados. Ao serão ele entreteve-se com o zapping enquanto ela dava uns pontos no blusão que ele usaria no dia seguinte. Como era habitual.

É RELATIVO

Os dedos atacavam impiedosamente as teclas. O corpo parecia tomado por espasmos. O rodopio da cabeça atirava-lhe o cabelo em todas direcções. A entrega era absoluta mas o piano teimava em notas desconexas. Amava a música acima de tudo mas não era correspondido. A vida tinha-lhe desferido a maior das facadas. Faltava-lhe o talento. Todo o seu empenho ao longo de anos servira apenas para rasgar mais essa ferida. Nunca seria ninguém. Desistia ali. No dia seguinte foi inscrever-se num Curso de que lhe haviam falado. Física ou Matemáticas Aplicadas, já não se lembrava bem. Pouco lhe importava, apenas precisava de assegurar a subsistência. Preencheu o formulário de matrícula e entregou-o no pequeno guichet da entrada. A funcionária pediu-lhe pelo nome. A resposta foi mecânica:
- Albert...Einstein.

O REI

Não se cansava de a olhar. Tanta beleza, tanta doçura. Desejava exprimir-lhe o que sentia mas receava não ser compreendido. Limitava-se a olhá-la. Ela retribuía. Deslizava o corpo pela sua mão, enrolava o cabelo nos seus dedos e sorria. Ele assistia deslumbrado. Não sabia que a vida podia ser assim. Estremeceu os ombros como que para acordar de um sonho, levantou a cabeça e sentiu a brisa quente da noite. Lembrou-se da sua terra que fora obrigado a abandonar. A saudade ainda o tentou mas foi logo afastada pela visão do sorriso dela. Terno. Meigo. Um turbilhão de sensações deixou-o imóvel. Tinha-a na mão mas estava nas mãos dela. Quis guardar para sempre aquele momento. Eternizá-lo. No instante seguinte foi crivado pelas balas dos aviões que desceram em voo picado. Ferido de morte caiu desamparado do topo do prédio mais alto onde se refugiara. Não sem antes a deixar na segurança de um varandim. Aquele momento valera a sua vida.

ALTA COMPETIÇÃO

Foram meses de preparação. Abdicara de muito para seguir com rigor a metodologia do treino. Ao longo do estágio nunca pensara em desistir e isso reconfortava-a. Os que a conheciam sabiam que era uma mulher decidida. Agora estava  perante o momento que justificaria todos os sacrifícios. Sentia-se segura. Lançou um olhar de desafio à distância que tinha pela frente. Fez uns ligeiros alongamentos e colocou-se em posição. Baixou a cabeça, convocou os músculos e esperou. À abertura das portas saiu como uma seta. Alcançou o terceiro lugar no primeiro dia de saldos do Corte Francês arrecadando 3 fatos de treino em tactel com 50% de desconto, 4 camisolões de gola alta em pura lã, com 60%, 2 pares de botas para a neve com 70% e uma árvore de Natal das brancas a que não resistiu por estarem com 80%. Fica já para o ano.

O AMIGO ANSELMO

- Como se chama um Bolo homossexual? 
- Bolo Gay!
Era uma das que o Anselmo mais contava pelo Natal.
Nos casamentos costumava brindar os noivos com outra das dele:
- O casamento é como um submarino; pode boiar mas foi feito para se afundar.
No Barbeiro assim que via o pano rodopiar à volta do pescoço de um calvo atirava de imediato:
- O que é um piolho na cabeça de um careca?
- É um sem abrigo!
Às senhoras que passeavam os cães no jardim mandava aquela:
- Como se chama um cão sem as patas de trás e com os testículos de aço?
- Faísca!
Era um bem disposto o amigo Anselmo. Sempre a reinar.  Havia uma em que ele arrasava. Infelizmente não a tinha presente. Apelou a todas as forças da memória para o ajudarem a recordá-la. De repente fez-se luz. Não conseguiu evitar uma curta mas sonora gargalhada. Todos os olhares o trespassaram de imediato. Afastou-se levado pelo nó da vergonha a sufocar-lhe o rosto. A partir daquele incidente o velório do Anselmo não voltaria a ser o mesmo.

BOM ANO!

Atrasado. Era assim que lhe chamavam. Na escola chegou sempre depois da hora. Compreendeu sempre depois dos outros. Entregou sempre os trabalhos mais tarde. A mulher chamava-lhe atrasado desde o dia de casamento em que secara 2 horas à porta da Igreja. Os filhos chamavam-lhe atrasado mas já se tinham habituado a esperar pelo pai à porta do colégio. O patrão chamava-lhe atrasado porque já não suportava os atrasos diários. Só a mãe gostava dele assim. - Sais ao teu pai meu filho. Sentiu a saturação por alturas de Dezembro. A partir do próximo Ano não mais voltaria a atrasar-se. Passaria a ser pontual. E foi com a firmeza interior desta mudança que se levantou, ergueu bem alto a taça e brindou convicto
- A TODOS UM EXCELENTE 2010!

ESCUTES

- És o maior pás!
- Não pás, tu é que és o maior!
- É pás, és do caraças!
- Não pás, tu é que és do caraças!
- É pás, és mesmo um gajo do caneco!
- Não pás, tu é que és, pás!
- Um gajo do caneco?
- Sim pás, do caneco!
- É pás, tu és baril!
- Não pás, tu é que és baril!
- Ó pás tu és bué da fixe!
- É pás tu é que és!
- Bué?
- Sim.
- Da fixe?
- Claro
- Porreiro, pás.
- Tá-se.
E lá foram abraçados rua abaixo o primeiro - ministro  e o secretário dos transportes a comemorarem a introdução de portagens nas SCUTS.

PASSAGEM DE ANO

Sentou-se ao balcão mas não queria nada. Apenas estar ali. As conversas entrecruzavam-se; votos de felicidades, de sucessos e de Euromilhões iam e vinham sem princípio nem fim. O novo Ano justificava todas as esperanças. As gargalhadas aqueciam ainda mais o ambiente denso de fumo. Como gostava de ouvir rir. Sempre pensou que o riso era uma vitória sobre a morte. Em casa não havia riso. Já nem o Felpudo que a esgana levara faz tempo. O sujeito que o atendia quando ia à prova de vida era simpático, mas o que ele gostava era de estar ali. Aquele ambiente viciado dava-lhe saúde. À Vossa!

O CISCO

Tinha um problema terrível. Sempre que mentia piscava os olhos.
- Então diz o senhor que não traficou influências.
- Deus me livre. Os olhos piscavam.
- Mas acusam-no de ter usado a sua posição para retirar benefícios pessoais.
- Só por má fé me acusam. Os olhos piscavam.
- Não assinei tal projecto. Lá estavam os olhos.
- Não falsifiquei o diploma. Novamente os olhos.
- Peço desculpa mas não fui eu. A culpa foi dessa malvada que veio de longe para me destruir o trabalho. Os olhos piscavam sem cessar. Felizmente ninguém se apercebia. A vida continuou e ele continuou a piscar os olhos. Cada vez mais. A necessidade passara a vício. Um dia perguntaram-lhe se se considerava um bom Líder da Nação. Respondeu prontamente que sim mas os olhos piscaram. Acabara de lhe entrar um cisco. Quem assistiu ficou convencido que uma vez mais tinha mentido.

CEGUEIRA

O passeio era seu conhecido. Depois vieram as obras de requalificação - como eles diziam - e o passeio passou a estranho. Seguiram-se mais obras de requalificação - como eles diziam- e o passeio passou a inimigo. Os sapatos tropeçavam no ladrilhado irregular da moda. A bengala chocava contra os palitos de ferro. O pequeno banco onde recuperava o fôlego fora levado com as árvores. O arquitecto galardoado não gostava delas. Tentou recuperar a amizade com o passeio. Calcava-o com suavidade para evitar as pedras soltas; usava solas de borracha nos dias de chuva para se aguentar naquele piso escorregadio. Encostava-se com cautela a um dos palitos de ferro para descansar por instantes. Um dia bateu desamparado num tortumelo de pedra que haviam colocado pouco antes. Ali ficou imóvel junto ao tortumelo até a ambulância o levar. Era uma singela homenagem ao arquitecto das obras.

domingo, 16 de janeiro de 2011

NAÚFRAGOS





- Vamos criar uma empresa? Perguntou o irresponsável

- Vamos a isso. Respondeu o incompetente.

- Importa formar desde já a Administração. Avançou o ganancioso.

- A empresa vai fazer o quê? cortou o honesto.

- Isso agora não interessa. Resmungou o ganancioso.

- Eu serei Presidente e vocês serão os meus vogais. Determinou.

- E quem organiza as funções? Insistiu o honesto.

Não tiveram mais paciência e atiraram o honesto à àgua. Só depois é que repararam que, excluindo a Administração, não restava mais ninguém para remar.

ACONTECE

O Polícia viu mas fingiu que não viu. Tal dinheirinho, tal trabalhinho. Mais à frente voltou a ver e a fingir que não. Tal dinheirinho, tal trabalhinho. A seguir viu um esticão mas voltou a fingir. Tal dinheirinho, tal trabalhinho. Chegou ao fim do dia. Correra bem. Despiu a farda, foi para o carro e viu. Nem os pneus lhe deixaram. Um colega esgueirava-se ao fundo da rua enquanto pensava: tal dinheirinho, tal trabalhinho.

SÓ MAIS UM CONTO DE NATAL

Era um dia lindo de Natal. Os flocos de neve caíam suaves. As luzes do pinheiro pareciam ter vida. A mesa oferecia-se em guloseimas. Tinha de registar o momento. Agarrou na caneta e procurou um papel. Não o encontrou. Mexiam-lhe em tudo. Exasperado vociferou contra a família, contra a sopeira, contra o Natal. Por fim lembrou-se de usar um guardanapo. Começou assim: Era um dia lindo de Natal.

AINDA OUTRO CONTO DE NATAL

As sobrancelhas desmaiadas sobre os olhos torpes, o sorriso lascivo e a calva ruborizada deixavam perceber o quanto era bom o que o monitor lhe mostrava. Os passos na sua direcção cortaram, cruéis, aquele deleite. Eram os desejos de Bom Natal que o obrigaram ao Escape rápido e à retribuição - Igualmente. Os passos afastaram-se. Recostou-se na cadeira e fez Enter. A Mãe Natal da foto era de estalo.

OUTRO CONTO DE NATAL

Os dedos titilavam vigorosamente sobre o teclado. Era preciso continuar a distribuir os presentes mesmo sabendo que o fim estava próximo. Tinham sido muitos anos a dar alegrias. Por momentos sentiu uma estranha nostalgia tomar-lhe conta dos sentidos. Parou pensativo. Ao fundo um grupo de crianças antecipava o momento de receber as prendas. Olhou-as com alguma irritação pelo barulho que faziam mas voltou aos seus pensamentos. O barulho aumentou. E aumentou. Levantou-se bruscamente, pegou no que a mão alcançou e preparou-se para o atirar na direcção dos diabretes. Elevou-se do chão rematou em suspensão e caiu. O coração atraiçoara-o.

CONTO DE NATAL

Não sabiam o que escolher. A loja enorme acentuava-lhes a indecisão. De repente na caixa gritaram:
- Já disse que não, hirra!
- É isso, é isso, vou levar mirra! Exclamou um deles.
Os outros continuaram. Pouco depois no altifalante ouviu-se:
- Bonitos casacos de couro.
- É isso, é isso, vou levar Ouro!
O terceiro pensou:
- Tenho que escolher com bom senso.
- É isso, é isso, vou levar um penso!