domingo, 28 de maio de 2023

A CHAMA IMERSA

As pessoas chegam apressadas, decididas, confiantes e, em menos de nada, o entusiasmo da multidão engole a praça. Bandeiras desfraldadas, punhos erguidos, vozes unidas, gritos de vitória. A força do povo, afinal há tanto por que lutar. Melhor saúde, melhor educação, melhor justiça, contra a exploração do trabalho, contra a corrupção, contra a ditadura do lucro, pela liberdade e pela democracia. Corri para a praça com os olhos iluminados de esperança, deixei-a com os olhos rasos de tristeza. Afinal não passava da comemoração de um agrupamento de milionários que tinham chutado bolas para dentro de balizas, mais vezes do que outros milionários. Ganharam eles, perdemos todos.

NO VERMELHO


- Uí ar de champias mai frein

And uíle quipon faiti tile de én

Uí ar de champias

Uí ar de champias

Nou tai fore lousas

Becoze uí ar the champias ofe de uorle

- Estás a cantar?

- Claro, sou campeão, pá 

- És campeão de quê?

- Sou campeão da bola, pá 

- E o que ganhaste com isso?

- Ganhar não ganhei, até gastei bastante nas quotas, nos bilhetes, nas camisolas, no canal da tv e a acompanhar a equipa mas agora sou campeão, pá 

- E daqui para a frente, o que vais fazer?

- Vou pôr uma bandeira do clube na janela da minha casa, vou meter um autocolante no vidro do meu carro a dizer sou campeão, vou pôr o hino do clube no toque do meu telemóvel e vou dar tanga ó gajo do banco que é do outro clube, pá 

- Vais dar tanga ao gajo do banco?

- Sim, quando lá for pá semana renegociar o crédito da casa, do carro e do telemóvel que, ao todo, tenho 38 prestações por pagar, pá

sábado, 20 de maio de 2023

ACTION MAN

 


- Profissão?

- Risco

- Que tipo de risco?

- Vários. Comecei por ser homem-bala mas por pouco tempo

- Porquê?

- Fazia calos

- Calos? 

- Sim, era disparado para longe e quando voltava para receber já não estava lá ninguém 

- E depois?

- Depois passei a transportar mobílias mas só à noite

- Trabalhou numa empresa de mudanças?

- Não, fui presidente de câmara 

- E depois?

- Depois, dediquei-me a fazer assaltos sem pistola

- Não me diga que foi ladrão?

- Não, fui orçamentista de obras públicas

- E depois?

- Depois passei a entrar em combates diários 

- Foi boxeur?

- Não, fui comentador da bola

- E a seguir?

- Fui nadador salvador

- Salvou muita gente?

- Muita gente não, salvei-me a mim

- E como é que se salvou?

- Disse que tinha Alzheimer 

- E depois?

- Fui domador de leões

- Nunca foi atacado?

- Nunca

- Que técnica usou?

- Esperei que os leões prescrevessem

- E agora, qual é a sua profissão?

- A mais arriscada de todas

- Qual?

- Sou segurança no ministério das infraestruturas.

domingo, 7 de maio de 2023

LUZ

A noite chega e lança demónios de muitas noites e dias. Há angústias de memórias que me sufocam. Há arrependimentos que se cravam como ferros. Há derrotas que me lançam por terra. Perco forças, esvaio-me em dor. E há uma voz que me resgata à escuridão do medo, me acalma, me diz que está ali. Que há-de estar sempre ali.

E da minha noite nasce um raio de luz chamado mãe.

segunda-feira, 1 de maio de 2023

A ALERGIA DA HIPOCRISIA

Por estes tempos primaveris aproveita a Natureza para se cruzar mas, não é por efeito dessa polinização, que os índices belicosos se constatam elevadíssimos. A comunicação social, por entre lágrimas reptilárias de conveniência, alimenta, explora e radicaliza a guerra. Serve-a empratada à mesa dos restaurantes, polvilhada sobre natas de pastelarias gourmet, em formato de distração nas salas de espera dos consultórios ou em estereofonia nas prisões envidraçadas do trânsito. Tudo devidamente intervalado por perfumes dominadores, por férias em paraísos charters, por pinturas metalizadas de sonhos rolantes ou por créditos para comprar o mundo a taxas de letra miúda. Poderá ser um cruzamento mediático e, de certeza lucrativo, mas jamais servirá à polinização da paz.

MAIO, MADURO MAIO

- Aclarem as gargantas

Vamos cantar com fervor 

Celebrar até às tantas

O dia do colaborador


- O que ouvi é uma gralha

Dia do colaborador não 

É dia de quem trabalha 

Para poder ganhar o pão 


- Lá vem este antiquado

Com conversa à camarada

O que quer é um feriado

Para espraiar na vida airada


- Trabalhar é um direito

Colaborar é desdém 

Um tamanho desrespeito 

Feito por quem lhe convém


- Aqui sou eu que comando

Aos outros cabe obedecer

Ou colaboram como mando

Ou trabalham sem comer


- Não quero colaborar

Com quem explora sem dó

Mas hei-de sempre trabalhar

Para os ver comer o pó