sexta-feira, 24 de junho de 2011

OS SEGUINTES



Deixaram-nos só os ossos
Mas não foram os culpados
Rezaram tantos pais nossos
Que limparam os pecados

E ainda nos avisaram
Que o abismo estava perto
Esquecendo o que fizeram
Para o naufrágio quase certo

A crise nunca tem pais
Ninguém lhe conhece dono
À primeira ainda cais
À segunda passas a mono

S. João, não me comovo
Com a velha ladaínha
Assado já anda o povo
Em vez da bela sardinha

quinta-feira, 23 de junho de 2011

OLHÓ BALÃO

Amava-a tanto que o amor lhe doía no peito. Forçava impiedosamente o talento que sentia escapar-lhe para a conquistar. Fustigava-se por não conseguir arrancar-lhe mais do que o mesmo olhar. Tão feminino mas tão frio. E nem uma palavra. Por vezes sufocava a revolta que o impelia a gritar-lhe a sua dor. Sabia que os outros não gostam que lhes apontem os erros, sobretudo os que cometem repetidas vezes. Não desistia. Acariciava-lhe as mãos como se tocasse em seda. Beijava-lhe os ombros ao de leve e olhava-a suspenso de uma coisa qualquer. Nada. Procurava respostas nos seus lábios. Nada. Um dia a revolta assomou incontrolável. Apagou o coração, esqueceu o deserto da sua vida, rasgou-lhe a válvula com um só golpe. Viu-a e ouviu-a gritar enquanto mirrava furiosa contra as paredes e o tecto do quarto. Aqueles gritos insuflaram-lhe um sôpro de amor próprio. Pela primeira vez a solidão confortou-o. Ela, por fim, calou-se. Foi um ar que lhe deu.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

PÓS - VENDA

- Ok, vou tentar.
- Anda lá pá, que até agora não arranjei nada.
- Os brasileiros não te iam dar a mão?
- Até agora só me deram com o pé.
- Pois, mas para mim também está difícil.
- Não te esqueças do que que eu te dei.
- Está bem, mas um emprego sem pores cá os pés...
- Não é tanto assim, posso ir a umas recepções, a uns briefings...
- Para isso já está tudo tomado.
- És meu amigo ou não, pá?
- Duvidas? Quem conseguiu que sacasses o curso? Quem te livrou dos escândalos em que te meteste? Quem te protegeu das asneiras dos teus outros amigos?
- E quem te entregou empreitadas sem concurso público? E quem te deu uma concessão a perder de vista no terminal de contentores? E quem te meteu nessa Administração?
- Está bem, está bem, vou ver o que se arranja.
- Olha que já estou cheio dos miúdos e de aturar as tardes da Júlia.
- Já te disse que vou ver.
- Mas anda depressa pá, senão volto para a política.
- Não, isso não, amanhã já te digo alguma coisa...
- Porreiro, pá.

sábado, 18 de junho de 2011

CURTO - CIRCUITO


Rolam elviras na pista
De corridas que o Rio gosta
Mas serão da Boavista
Ou serão da boa bosta?

S. João eu bem te digo,
Ele sonha em ser Primeiro,
Se não foges para o abrigo,
Ainda te atropela o carneiro

Ó meu rico S. João
Ó meu santo padroeiro
Leva este Rio morcão
A desaguar num bueiro

sexta-feira, 17 de junho de 2011

TÁ DIFÍCEL

- Ei pá, há quanto tempo.
- É verdade.
- Ainda és lixeiro?
- Não, sou técnico especializado de higiene urbana.
- Então, já não andas a despejar caixotes de lixo no camião?
- Não. Agora promovo o vazamento selectivo de contentores no veículo de recolha de resíduos sólidos urbanos.
- Sim senhor. E a tua mulher, ainda anda a dias?
- Não, é empresária.
- Uau, o que faz?
- Técnica especializada de higienização domiciliária.
- Hum, e o teu filho ainda é trolha?
- Não, é Engenheiro.
- Ei pá, como é que conseguiu?
- Com as novas oportunidades.
- Faz projectos?
- Faz. Para o ano tenciona ir de férias a Punta Cana. E tu que fazes?
- Sou gestor de empresas.
- Deixaste o banco?
- Não. Sou gestor de empresas... no banco.
- Compreendi-te. E o teu filho?
- Anda em Direito.
- Para advogado?
- Não. Para Juíz.
- Isso é difícil.
- Não, só tem de copiar bem.
- É justo.

terça-feira, 7 de junho de 2011

CONTO QUENTE DE NATAL


Todos se queixavam do frio. Ele não. Todos corriam na azáfama das compras obrigatórias. Ele permanecia imóvel a ver. Todos sonhavam com plásticas à cara. Ele tinha orgulho na sua cenoura. Todos se fecharam em casa a alambazarem-se com a ceia. Ele ficou na rua a contemplar a pequena labareda da lanterna do alpendre. E ali continuou. Foi preciso a Primavera para o levar.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

ESTÁ VAÇO O VAGAÇO

- Não há dúvida.
- A polícia portuguesa é mesmo voa.
- Quando me assaltaram a casa...
- Tu tens casa?
- Desde que o vanco veio vuscá-la, não.
- E então?
- A polícia foi impecável.
- Porquê?
- Pediram-me todos documentos para me identificar.
- E depois?
- Tinha a carta caducada mas perdoaram-me.
- Pois vê lá tu, que eu quase reventava o valão.
- E eles?
- Vacanos, disseram-me que por aquela vez passava.
- Mai nada?
- E para não voltar a repetir.
- E tu repetistes?
- Naquela noite não.
- Saves que em Espanha aconteceu-me o mesmo.
- A polícia apanhou-te vêvado?
- Mas tamvém foram impecáveis.
- Não te multaram?
- Não.
- Porquê?
- Ia a pé.
- Vem pensado, pede mais dois pó pó do caminho.