domingo, 4 de novembro de 2018

CRÓNICA DA MEMÓRIA


No tempo em que nasci não havia crianças. Eramos todos homenzinhos e mulherzinhas. Nesse tempo havia um abade na igreja da minha freguesia. Homem imponente, careca enorme, rosto sombrio. A ser representante de deus na terra, como se dizia, deus deveria ser um daqueles homens do saco com que as mães ameaçavam os filhos avessos à sopa. Era dele a missa das 10h, ao domingo, para pavor de todos as mulherzinhas e homenzinhos da catequese da paróquia.

A missa era grande como ele e a homilía pesada como ele. Falava dos anjos, dos santos, do juízo final, enquanto eu pensava nas cuecas que a minha mãe me dera e que apertavam quase tanto como a homilía. A meu lado sentava-se o rique. O rique tinha desenvolvido uma técnica de dormir de olhos abertos que dominava na perfeição. Só se percebia que dormia pelo fio de baba que, a espaços, lhe escorria do lábio inferior. Que inveja tinha eu do rique. A mim e aos outros nada mais restava do que contorcermo-nos disfarçadamente nas cadeiras para aliviar o medo e o tédio que a imponência falante nos causava.

Após a homilía seguiam-se os cânticos. O coro do abade eram os dois sacristãos da igreja. Um baixo, gordo e velho, o outro alto, magro e novo. As diferenças entre ambos aumentavam quando o fervor dos cânticos lhes escancarava as bocas. O mais velho exibia o único dente que se lhe mantivera fiel, o mais novo ostentava duas fileiras deles, tão compridos que lembravam cavalos a relinchar. O timbre das vozes também os separava. O velho soltava graves abafados, alguns dos quais nem chegavam a sair, presos que ficavam no dente estóico. O novo esganiçava agudos como se lhe estivessem a apertar as partes baixas com um alicate de pontas. Era o medo maior que se instalava; o de rir. Eu assistia à actuação com uma expressão seráfica, libertando a pulsão do riso através de convulsões abdominais que a camisola larga dissimulava. Tinha de ser. Lembrava-me bem do que sucedera ao tone; não aguentou e deixou fugir uma gargalhada. Ainda disse deus me salve para fazer de conta que tinha espirrado, mas de nada lhe valeu. O abade parou a missa, chamou-o ao altar e esmagou-o de vergonha perante a igreja apinhada. Aterrado, até imaginei a minha sala de aula na escola primária com a cara vermelha do abade ao centro, ladeada pela cinzenta do salazar e a branca do tomaz. Coitado do tone. Ao regressar ao lugar ainda levou um puxão de orelhas do pai, muito amigo do abade, que lhe metera uma cunha para a irmã ser empregada de escritório.

A comunhão era outro momento difícil. Recebiamos o corpo de cristo em fatias finas, pegajosas, que se colavam ao céu da boca. A tentação de lá ir com o dedo era logo reprimida pelo olhar ameaçador dos catequistas. Tinha uma boa cola o corpo de cristo. Tão boa que, depois da comunhão só o abade falava português. Nós respondiamos com a língua entalada sabe-se lá em que parte do corpo da divindade. O fim da missa não trazia o alívio pois que logo iniciava o ensaio para a comunhão solene. Que o abade acompanhava de perto, pois claro.

No tempo em que nasci não se falava em pedófilia, é um facto. Mas que já se abusava de homenzinhos e de mulherzinhas, lá isso já.







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