terça-feira, 6 de novembro de 2018

CRÓNICA DA AMIZADE



Não as matei todas mas liquidei bastantes. Refiro-me às saudades que sentia do rique e do tone, amigos de infância que não via vai para anos. Foi depois de um café curto, com um cheirinho a progresso vindo das obras de um hostal ao lado, que repescamos as vidas.

O rique está muito bem. Pegou na técnica de dormir com os olhos abertos que tinha desenvolvido em catraio na missa e usou-a para ganhar a vida. Faz de estátua em Santa Catarina. Especializou-se na figura do Adão, com a parra, a maçã e um cachecol em lã besul, quentinho, para não constipar. A profissão é puxada mas o rique nasceu para estar quieto. Passa horas sem bulir um milímetro, nem sequer quando as moedas cantam no penico de esmalte que tem à frente. A semana passada é que precisou de se mexer bastante. Veio um pastor alemão direito a ele, com ar de quem queria trincar mas não a maçã. O rique soltou um guincho, pinchou do caixote e desalmou-se a correr rua abaixo. Só parou na casa das tortas a embutir finos e a agasalhar pastéis de chaves para se recompor. Nem reparou que, na correria, tinha perdido a parra. Não foi pecado mas foi original ver os turistas fazerem fila para tirarem selfies com o Adão integral.

Já o tone subiu a corda a pulso. Começou por falir uma loja dos trezentos, depois faliu uma de tudo a um euro e só não mandou à vida uma de compra-se ouro porque a penhora chegou antes. Ainda andou com uma t shirt a dizer "quer emagrecer, pergunte-me como" mas estava um chibo e o pessoal desconfiou. O negócio foi-se finando até o tone ficar pele e osso. Ao menos fez-lhe efeito. Andava ele desesperado a desfazer-se dos bens de uma tia afastada, quando um cunhado que trabalha na Câmara lhe ajeitou para vender casas. Diz o povo que não há mal que sempre dure e com razão. A tia voltou a ter sossego e o tone passou a ser um exímio consultor imobiliário. Ainda há dias vendeu um apartamento na rua do Almada, pequenino mas muito aconchegante. Só teve de tirar o cão lá de dentro e de dar uma refrescadela às paredes. Tinham muito pêlo agarrado. Os compradores estrangeiros ficaram radiantes. Dormem com os pés de fora, é certo, mas não há problema. Usam carapins. E foi uma pechincha, nem chegou a 150.000 eur. O tone gostou tanto deles que até lhes ofereceu um disco do marante que sacou na vandoma por euro e meio. Assim os estrangeiros têm música tipicamente tripeira no loft dog evolutive. É o nome que o tone deu à casa.

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