quarta-feira, 25 de abril de 2012

LÁPIS DE ABRIL


Aproximou as folhas e as palavras apareceram. Ajustou o microfone, pigarreou discretamente e iniciou:
- Portugueses, hoje é o dia em que celebramos um dos momentos mais altos da nossa história. Foi nesta data que conquistamos os valores sagrados da democracia. Foi nesta data que pusemos fim a um regime que recordo com muita saudade e... Parou bruscamente. Afinou a vista para comprovar o que lera. Sem perceber, compenetrou-se e prosseguiu. - Vivemos momentos de dificuldades. Conheço-as bem e até já as mensurei com o meu exemplo. Estou, todavia, certo de que mais uma vez conseguiremos ultrapassá-las reforçando os impostos e os sacrifící... Estancou novamente. Levou a mão aos cantos da boca, removeu nervosamente a saliva e retomou. - Tivemos responsavelmente de recorrer a assistência externa. É um facto. Mas creiam-me que o FMI não é o predador que muitos consideram. Desde que, obviamente, não lhes ponham camareiras à frente. Sentiu-se precipitado no vazio. Lançou um olhar atónito ao seu assessor que lho devolveu com dose acrescida de pânico. Respirou fundo e disse para consigo que era capaz.
- A nossa história está recheada de exemplos de valentia, de abnegação e de precariedade, quero dizer, de solidariedade. Muitos foram os adamastores que tivemos de sustentar, digo, de derrotar e uma vez mais seremos desempregados, isto é, determinados em busca da emigração, quero dizer, da recuperação. Uma sacudidela de perna permitiu-lhe disfarçar o espasmo nervoso que o atacou.
- As exigências são elevadas mas precisamos, em conjunto, de saber apreciar a ana malhoa, quero dizer, a parte boa do nosso esforço. Estou ciente que dessa forma conseguiremos elevar bem alto o custo da segurança social, isto é, o nome de Portugal...
Não aguentou mais. Deu dois passos atrás, bateu em cheio com as costas da mão nas folhas e disparou:
- Este não é o discurso que a maria me fez, digo, que eu fiz! Alguém andou aqui a escrever asneiras!
Ao fundo de uma plateia de rostos comprometidos rasgou-se um largo sorriso. Pertencia a um homem com um chapéu de abas largas, que usava barba sem bigode e que trazia na lapela um viçoso molho de cravos vermelhos. Chamava-se Zé.

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