domingo, 14 de março de 2021

É PELAS ALMAS


São Pedro aguardava com o nervoso miudinho a tamborilar-lhe os dedos na inseparável chave do céu. O desconforto da ansiedade estremecia-lhe a confiança e quase o fazia sentir-se santo com pés de barro.

A porta abriu-se de repente e uma voz metálica gritou:

- Que entre o do céu!

Entrou. O director de programas lançou-lhe um olhar altivo e perguntou-lhe ao que vinha.

- Gostava de apresentar um programa na sua televisão. Respondeu São Pedro.

Um velho enfiado num manto branco, a segurar uma chave ferrugenta teria decerto pouco para oferecer, pensou o director.

- Que tipo de programa? Atirou.

- Bom, como sabe eu sou o porteiro do céu, conheço gente boa, de carácter, gente generosa, sábia e humilde e gostaria de enriquecer os espectadores com os seus testemunhos de vida.

- Ò do céu, o que nós precisamos é de grandes audiências e essas não se conseguem com palavrinhas meigas mas com sensacionalismo, com guerra, com choque, percebe?

- Pois sr director, mas pensei que um pouco de harmonia e de paz pudesse ajudar a ....

- Qual harmonia e paz, homem! Olhe lá, você sabe mais palavrões do que palavras?

- De facto não, senhor director.

- E tratar as pessoas abaixo de cão, sabe?

- Não, sr director.

- E alguma vez fingiu uma greve de fome?

- Também não, sr director.

- Então volte lá para donde veio que a descer todos os santos ajudam.

São Pedro encaixou o cinismo e saiu. A voz metálica gritou de novo:

- Que entre o do inferno!

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