O rio desliza por um tempo adormecido. As pedras sussurram-me feridas inacabadas de memórias exaustas. A ponte quer levar-me para a outra margem do sonho. E eu embarco num balão de São João que sobe pela noite feita de luz.
O rio desliza por um tempo adormecido. As pedras sussurram-me feridas inacabadas de memórias exaustas. A ponte quer levar-me para a outra margem do sonho. E eu embarco num balão de São João que sobe pela noite feita de luz.
CONDENADO
A sala vergava-se sob o peso de um silêncio ameaçador. O juíz enfunou a toga, crispou as sobrancelhas e lançou um dedo na direcção do réu:
- Vem acusado de atentar contra a desregulação do trabalho, contra a privatização de empresas, de subverter a comunhão de interesses entre políticos e grandes investidores, vem acusado de conspirar contra os negócios do futebol, dos eucaliptos e das barragens, de se rebelar contra extremismos, racismos e outros fundamentalismos, vem acusado de defender a liberdade sobre a alienação, a solidariedade sobre o lucro, o amor sobre a indiferença e, como se não bastasse, ainda desrespeitou a justiça chamando-lhe lenta, cara e injusta. Por tantos e tão gravosos delitos condeno o réu ao desterro sem apelo nem agravo.
Antes que pudesse esboçar um gesto, o bom senso viu-se algemado e conduzido a uma carrinha celular.
Poucos dias depois foi abandonado numa ilha tão inóspita quanto longínqua. Consta que não fica muito longe das ilhas para onde foram desterradas a inteligência e o discernimento.
Lembras-me alguém, talvez de mim. Lembras-me de mundos que inventei em brincadeiras de crianças. Lembras-me de voar em papagaios feitos de vento e de ser rei e plebeu em histórias de adormecer. Lembras-me de casas pequeninas e de pássaros com pernas longas pousados em desenhos que a vida coloria. Lembras-me de correrias alegres e de cansaços felizes. Lembras-me de sorrisos e de beijos nascidos de abraços que queria eternos. Lembras-me das minhas fraquezas, dos meus medos, da dor dos meus erros. E lembras-me do amor assim imperfeito em que me dei a cada instante. Sei que neste mundo tudo é frágil, tudo passa, mas eu não me esqueci. E tu, lembras-te, meu filho?
São Pedro aguardava com o nervoso miudinho a tamborilar-lhe os dedos na inseparável chave do céu. O desconforto da ansiedade estremecia-lhe a confiança e quase o fazia sentir-se santo com pés de barro.
A porta abriu-se de repente e uma voz metálica gritou:
- Que entre o do céu!
Entrou. O director de programas lançou-lhe um olhar altivo e perguntou-lhe ao que vinha.
- Gostava de apresentar um programa na sua televisão. Respondeu São Pedro.
Um velho enfiado num manto branco, a segurar uma chave ferrugenta teria decerto pouco para oferecer, pensou o director.
- Que tipo de programa? Atirou.
- Bom, como sabe eu sou o porteiro do céu, conheço gente boa, de carácter, gente generosa, sábia e humilde e gostaria de enriquecer os espectadores com os seus testemunhos de vida.
- Ò do céu, o que nós precisamos é de grandes audiências e essas não se conseguem com palavrinhas meigas mas com sensacionalismo, com guerra, com choque, percebe?
- Pois sr director, mas pensei que um pouco de harmonia e de paz pudesse ajudar a ....
- Qual harmonia e paz, homem! Olhe lá, você sabe mais palavrões do que palavras?
- De facto não, senhor director.
- E tratar as pessoas abaixo de cão, sabe?
- Não, sr director.
- E alguma vez fingiu uma greve de fome?
- Também não, sr director.
- Então volte lá para donde veio que a descer todos os santos ajudam.
São Pedro encaixou o cinismo e saiu. A voz metálica gritou de novo:
- Que entre o do inferno!
Raspa a raspadinha
Nem que seja até doer
Raspa a raspadinha
Pelo que te falta viver
Raspa com a tua fé
Com todo o teu sentimento
Raspa contra a maré
Do maldito esquecimento
Raspa os erros e os rancores
Raspa as memórias feridas
Raspa traições e desamores
Raspa as tristezas sofridas
Raspa pelo tempo perdido
Pela esperança, pela união
Raspa pelo que te é querido
Raspa com o coração
Raspa a raspadinha
Que a sorte ainda está aqui
Raspa a raspadinha
Antes que a vida te raspe a ti
Ela fala e eu escuto. A voz é trémula e o olhar cansado que a doença fustiga. Enquanto fala peço-lhe em silêncio que me dê o seu colo, que me afague o cabelo, que me deixe ser o seu menino outra vez. Ela fala e eu sinto a sua mão na minha a caminhar pela rua num dia de sol porque de sol são todos os dias da infância. Ela fala e eu descanso-a porque já fiz os deveres da escola e comi o pão com marmelada que me meteu na pasta. Ela fala e eu prometo-lhe que não voltarei a subir às árvores sabendo que não cumprirei, que é do cimo delas que se conquista o mundo. Ela fala e eu peço-lhe que me deite na cama, me aconchegue e me cante a canção dos sonhos bonitos.
Ela pára e pergunta-me porque estou calado. Respondo que fui fazer uma viagem com ela. Um sorriso enche-lhe o rosto de vida. A voz é trémula e o olhar cansado mas agora há a luz de um sorriso. A doença não venceu a força de uma mulher, a força da minha mãe.
Neste momento terrível dirijo-me a vós, os verdadeiros portugueses brancos, nascidos na nossa pátria, filhos de pais da nossa pátria, netos de avós da nossa pátria, que levaram durante séculos o nosso progresso aos povos incultos do mundo mas que nunca conspurcaram o nobre sangue lusitano com descendências indesejáveis. A vós portugueses genuínos apelo a que juntem a vossa à minha voz e em uníssono gritemos bem alto o nosso repúdio por tão vil acontecimento. Portugueses, nunca fomos, não somos e jamais seremos racistas mas eles que vão lá para a terra deles que não precisamos de medalhas para nada. A nós, bastam-nos os nossos valores.
Viva o populism... quero dizer, viva a fuga ao fisc... quero dizer, viva o benfi... quero dizer, viva Portugal!