Cessinho Filho,
Acabamos de aconchegar uma orelheira de porco com couve e feijão vermelho que, não desfazendo, estava um consolo. Quando me veio à lembrança que é um dos teus pratos predilectos e tu sem le poderes botar o dente, até se me deu uma pontada do lado direito. Deve de ser as saudades a alojar-se na visícula.
Por aqui, em Afanães, as coisas têm continuado em boa estagnação, tirando o avô Epifâneo. Não sei se foi do bicho se atrasar um bocadito, o certo é que ganhou semelhante cisma ao cuco do relógio que nem queiras saber. Sempre que o bicho vinha cá fora dar horas, punha-se a insultá-lo do piorio. Às tantas, o cuco, já só botava a cabecita de fora e todo a tremer. Passou a ter uma profissão de desgaste rápido. Um dia, o avô enervou-se tanto que, quando tal, pegou no fusil do tio Negos e mandou-le um balázio. Felizmente não le acertou, mas fez um buraco atestado na parede da sala. Por acaso até me deu jeito porque assim passei a ter serventia para a cozinha sem ter de ir à volta pela porta. O teu paizinho, mal ouviu o estrondo, apareceu logo com o bombo à barriga. Pensou que era o grupo de Zés Pereiras a começar o ensaio. Para acabar com o assunto, tive de dizer ao avô que o cuco se apagou. Agora, espero que ele se vá deitar e só depois é que aproveito para ir dar de comer ao bicho, tadito.
O teu paizinho, esse também anda um bocadito diferente. Para desenjoar do bombo, deu-le para cantar músicas românticas. Sobretudo quando vai defecar. A que ele mais gosta é a do " Recordar é viver " do Espadinha. A parte do " Foi em Setembro que te conheci " ainda vai, mas quando chega ao " Trazias nos olhos a luz de Maio " já está em esforço. É do puxar. O romantismo do teu paizinho é um consolo. Cheira um bocadito mal, é certo, mas alivia. O maior problema é o avô Epifâneo. Mal ouve o paizinho a cantar, dá-lhe semelhante ataque de saudades do cuco que desata num pranto. E não há quem o cale. Segue-se que um dia até me apeteceu dizer-le que era tudo mentira, mas o cuco, antecipou-se e apareceu cá fora todo lampeiro. Mal o viu, o avô foi logo buscar a fusca e fez outro buraco na parede. Este vou ter de o mandar cimentar. Ou então mando-o nacionalizar que é o que está na moda fazer aos buracos, não é?
De resto, corre tudo dentro do normal, tirando a campanha para as eleições. Como se esperava, o Toninho recandidatou-se à Câmara. Desta vez anda a prometer que se deitarmos nele vai inaugurar umas termas em Afanães, mas não umas termas quaisquer. Estas só vão ter tratamentos à base de vinho, que é muito bom para o reumático e, a bem dizer, para tudo em geral. Nem queiras saber a quantidade de afaneneses que já anda para aí a queixar-se de reumatismo.
Finalmente, quero dizer-te que um dia destes vamos aí visitar-te e levar-te coisinhas boas de Afanães para te atrofiar as saudades. O paizinho promete que leva o bombo para dar ambiente, está bem?
Até lá recebe beijos desta tua mãe que se assina,
Jovelina
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