quarta-feira, 18 de setembro de 2013
DE SUCESSO EM SUCESSO, VAI ANDANDO O ABCESSO
Querida Mãezinha,
Perdi-me dentro de mim
No labirinto do meu ser
E quem me fez perder assim?
As saudades de te não ver
O início desta missiva, ter-te-á, porventura, espevitado para uma legítima surpresa decorrente da minha veia poética. Descobri, efectivamente, que sou talhado para o verso e da forma mais inverosímil: através da minha nova profissão. Com efeito, fui admitido numa empresa de cobranças difíceis que abundam aqui na cidade. Trata-se de um serviço promissor, pois que, verifica-se uma acentuada e até crescente tendência das pessoas para não honrarem as obrigações contratualmente assumidas. Nem essas, nem aliás, quaisquer outras.
Na dita empresa expuseram-me que deveria ser inflexíveil, altivo e até contundente no exercício das funções cobrativas. Mas, Mãezinha, uma vez mais o meu espírito inovador falou mais alto. Considerando que tais métodos não se adequariam da melhor forma ao pretendido desiderato, contrapus com uma abordagem inédita, dizendo-lhes de improviso:
Créditos por mãos alheias
Não conheço essa expressão
Caiem nas minhas teias
Pagam até ao tostão
Convencida a entidade patronal da originalidade do meu método, parti de imediato para a recuperação creditícia. A minha primeira abordagem, junto de um senhor devedor, pautou-se pela rima elegante:
Estimado cliente
Não pretendo incomodar
Mas ficaria contente
Se nos pudesse pagar
Tal como eu, o senhor era igualmente talhado para o verso e respondeu-me a contento:
Falaste bem e depressa
Mas nenhuma orelha te ouviu
Vai falar com essa pressa
Para p...
Naquele preciso momento, Mãezinha, passou uma camioneta da campanha eleitoral e não consegui ouvir a parte final. Bem pena tive porque seria com certeza uma boa rima. Confesso que fiquei com a pulga atrás da orelha.
De outra vez, porém, a diligência recuperativa não logrou um desfecho tão positivo. Assim que soube do meu propósito, o senhor devedor endossou-me uma soca directa à caixa craniana, que me atingiu na zona capilar superior. Sentindo um empolamento, que já me é infelizmente familiar, repreendi-o de pronto:
Desculpe V. Excelência
O que fez foi muito feio
Peço-lhe mais decência
Que, de galos estou cheio
O senhor relapso, retorquiu:
Foge lesto para a toca
Não te metas em apuros
Se não vai a outra soca
Para te pagar com os juros
Nesse dia, experienciei ainda outra vivência recuperativa que, igualmente, não poderei apelidar de agradável, ainda que, dessa vez, tivesse sido mais afirmativo:
O senhor é caloteiro
Sempre com a mesma cassete
Mas eu saco-lhe o dinheiro
Com um golpe à 007
O devedor, porém, não se intimidou e respondeu:
Eu cá não tenho dinheiro
Por isso, que me queres tu?
Vou assentar-te um biqueiro
Nesse olho cego do...
E, antes de acabar a rima, assentou mesmo. Confidencio-te, Mãezinha, que a latejância galinácio/craniana, bem assim como a nova inflamação do enes, resultantes do exercício profissional, trouxeram-me à lembrança tristes momentos anteriormente vividos.
Desconheço se manterei esta actividade por muito mais tempo, mas de uma coisa estou certo; necessito que me endosses com urgência mais um garrafãozinho de aguardente, pelos motivos que são por demais do teu conhecimento.
E com dor assim termino
Mas não quero que tu penes
Num instante fico fino
Quer dos galos quer do enes
Recebe um beijo deste teu rebento amado,
Abcesso Inocêncio Truncado
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