Um ribombar de trovões e logo um raio cintilante de inteligência rasgou a noite para o trespassar sem apelo nem agravo. Electrizado pela inspiração recebida, talvez atmosférica, quiçá celestial, o autarca precipitou-se sobre o papel, abrindo-lhe sulcos vigorosos com a caneta Montblanc que a mulher lhe ofertara por alturas da tomada de posse. No dia seguinte nascia a obra, uma linha de tinta branca a ladear todo o passeio do cemitério que para ali nada melhor que uma ciclovia. Ganhava a urbe em modernidade, ganhava o único ciclista que por lá passa de longe a longe e ganhava o autarca em prestígio visionário.
Um desrespeitador cidadão dos altos desígnios autárquicos entendeu, porém, aparcar o automóvel sobre a imaculada linha, aventurando-se por breves minutos a visitar a campa de familiares. Ainda não tinha dado o terceiro passo no interior do cemitério e já o sobrolho carregado de um agente da autoridade, vestido de líder da montanha da volta à Portugal em bicicleta, o ameaçava de multa, não retirasse ele de imediato a afronta motorizada de cima da alva obra.
- Acha que criar uma ciclovia à porta de um cemitério é de bom senso? Afoitou-se o cidadão a uma troca de argumentos com a velocipédica autoridade.
- Eu tenho é de fazer cumprir a lei
- Mas imagine que um ciclista aqui chegado se confronta com um funeral a obstruir-lhe a ciclovia. Terá o sr agente de ordenar ao funeral que desmobilize para que passe o ciclista ou, no caso de recusa, de multar todos os que o integram, estou a dizer bem?
- Não, nessa situação tem de imperar o bom senso.
- Mas, um funeral assim aparcado, viola a lei exactamente nos mesmos termos em que o estou a fazer agora
- Já lhe disse que é uma questão de bom senso. Retire a viatura.
O cidadão sentou-se ao volante. Se um sentimento de revolta lhe endurecia a traqueia, não podia, ainda assim, desvalorizar o conforto de um calor ameno a acariciar-lhe a espinha; é que naquele momento ficara a saber que quando chegar a sua hora ninguém será multado por o acompanhar até à última morada. Por uma questão de bom senso.
O agente ciclista, esse deteve-se mais adiante noutros carros a realizar discretamente o seu sonho de escriturário. Puxou do bloco das multas para o sulcar de contraordenações com uma caneta Parker que a mulher lhe ofertara por alturas da conclusão do curso das novas oportunidades. Para quem não se lembra foi a forma que o sr engenheiro sócrates encontrou para aumentar muito rapidamente as habilitações académicas de uma boa parte da população, atribuindo o 12° ano a todos os que soubessem assinar o nome. Por uma questão de bom senso.
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