sábado, 19 de outubro de 2019
ESCRITO À PALA
O sonho maior dos portugueses, a seguir ao euromilhões, ao falecimento súbito de uma tia rica e ao dizer adeus em directo na televisão, é andar de carro à pala. Qualquer análise sobre o fenómeno que se queira pautada por critérios de objectividade tem, necessáriamente, de atender ao facto do país se encontrar partido em dois. Neste contexto, pode dizer-se que os nativos do sector privado experimentam maiores dificuldades em concretizar o sonho. Não poucas vezes são forçados a recorrer ao empréstimo de um amigo de ocasião, ao incontornável cheque sem cobertura ou, ao sempre tentador abastecimento e fuga. Os do sector público, ao invés, dispõem de um leque mais alargado de opções. Desde as viaturas do poder central até às municipais, passando pelas da polícia e do exército, circulam em boa desenvoltura, com a expressão inconfundível de quem anda à pala. É com ela estampada no rosto que se poderá ver o motorista de um ministro a aproveitar a reunião de governo para conduzir a estatal viatura até local recatado e aí experienciar, juntamente com a namorada, a suspensão a partir do banco traseiro. Será também com idêntica expressão a iluminar-lhe o facies que se observará um funcionário da limpeza a deslocar-se à EDP no camião do lixo para liquidar a sua conta da luz ou o agente da autoridade a accionar a sirene da viatura policial para chegar mais depressa ao cozido que a cara metade lhe preparou no doce lar. Poderá até ser percebida no jardineiro que se desloca no carrinho de cortar relva à sede do clube do coração para aí pôr as quotas em dia, deixando um rasto de erva no alcatrão que lhe acentua, e bem, a faceta ecológica.
Ainda que as possibilidades de concretização possam ser diferentes, os superiores valores morais que informam os nativos de ambos os sectores revelam-se convergentes ao ponto de se poder, também nesta matéria, estabelecer mais uma parceria público-privada. Com efeito, uns e outros, confrontados com os casos noticiados a ritmo diário de apropriação indevida de bens alheios, são unânimes, céleres e contundentes a sentenciar:
- Cambada de ladrões! Comigo, iam todos de carrinho.
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